O encontro



Movia as pernas freneticamente esperando o computador desligar, levantou-se apagou as luzes da sala e saiu. Era sexta-feira, cinco da tarde no horário de verão. Brasileiro já sofre pouco para se submeter a essa porra de horário, dizia. Fechou a porta e deu com a faxineira, Cuidado doutor o chão está molhado, bom fim de semana, Bom fim de semana, respondeu. Não sabia por que a faxineira lhe tratava como doutor, não era nada, fizera administração, mas nem administrador era. Fazia cena de chefe no escritório e se importava em manter o emprego apenas. Na verdade encenava demais e já estava cansando disso. Viu um amigo na sala ao lado, ignorou-o. O chão estava muito molhado, aparentava desperdício, porém não se preocupou. Quase conseguiu que o “Diretor de Assuntos Estratégicos” não o visse, perdeu importantíssimos quinze minutos com a conversa. Falaram das metas que alcançaram, dos objetivos da empresa e do desempenho de um empregado, ambos envergonhados da irrelevância dos assuntos para o contexto, porém bons atores.

Toda a demora fora compensada pela presença, no elevador, da nova recepcionista do 18º, linda e tímida. Teve prazer, dessa vez, em falar sobre metas, objetivos e desempenho. Toda cordialidade automática que têm as mulheres bonitas, teve a moça. Ele entrou no elevador no 17º, a conversa era interrompida quase que de andar a andar. Boa noite, Boa noite, Boa noite, Que calor, já é sexta-feira, Até mais, Bom fim de semana, Bom fim de semana.

No corredor, saindo para a rua o ar condicionado estava mais fraco, o cheiro de gente mais forte, o chão também molhado, os elevadores do prédio despejaram muitos empregados, todos quase que instantaneamente. Estavam ali também uma faxineira, porteiros e seguranças. O jardim no corredor, que normalmente faz bem, agora o incomoda. Isso ocupa muito espaço, deviam retirar tudo e colocar plantas em vasos menores, disse. Abaixou a cabeça, não cumprimentou ninguém e se foi. Deixou a moça junto à multidão.

Quando entrou na rua, levou uma porrada do novo ambiente, um bafo de sol sobre pobres, um barulho infernal, um inferno. Gritos de pessoas vendendo coisas e serviços, placas ambulantes, buzinas, caixas amplificadas com som a toda altura fazendo propaganda ou apenas perturbando. As pessoas do centro fedem, pensou.

No trajeto até o estacionamento o corpo ia automaticamente. A mente tentava processar o que os olhos viam, normalmente encarava as mulheres que vinham e acompanhava os rebolados enquanto iam.

Entrou numa rua proibida para transito de automóveis, era um “camelódromo”, os gritos incessantes, pessoas vendendo produtos contrabandeados, roupas falsificadas e comidas que não alimentam aos olhos, mas dão energia. Toda gordura daquela comida ajuda aos camelôs carregar as mercadorias sobre ombros, gritar o dia inteiro e, eventualmente, fugir da fiscalização. As coisas que pensava das mulheres aqueles vendedores falavam sem discrição, algumas gostavam, outras, não soube interpretar o silêncio ou a cara franzida.

Foi surpreendido por um produto que acabara de ser lançado nos EUA e tinha a previsão para ser vendido no Brasil apenas em dois anos e estava sendo vendido ali - na rua. A banca era improvisada por caixas de madeira, forrada por um tecido sujo, duma cor que não podia definir. O vendedor gritava “O mais novo lançamento de conectividade, todas as mídias num só aparelho e etc.” Sentiu no peito uma depressão que o assola demasiadamente: Os meios de transporte e comunicação evoluem e os homens que os possuem sentem-se evoluídos na mesma proporção. Igualou aquela feira a uma feira fétida de peixes nas periferias da Europa na idade média e teve nojo. O homem não sai do lugar, se sai retrocede, acaba com as fontes da energia que o alimenta, simplifica os sentimentos e as artes e o pior, sente-se bem com isso.

Saiu do centro do inferno, faltava ainda um vale até o estacionamento: uma avenida larga, quatro pistas para cada sentido. Na porta do estacionamento um deficiente físico pedindo esmolas. Essas porras são aposentadas e ficam aí nos importunando. Olha esse como grita, parece ter uma faca que lhe transpassa as entranhas, aposto que não sente nenhuma dor e grita feito louco. É o que passava em segundo plano na sua cabeça. Em primeiro passava a idéia de que em pouco estaria dentro do carro com ar condicionado ouvindo uma boa música e o resto não importaria.

O mundo realmente ficou do lado de fora, o sol quente e o barulho não mais fazia sentido, entretanto nada mudou.

Para fazer o retorno e ir para casa, precisava passar em frente ao prédio que agora a pouco o vomitara. Tentou imaginar-se ali, na porta do prédio, olhando para ele mesmo no carro. O que pensaria olhando-se nos olhos? Nada! Não conseguiu sair do lugar, ele que de tudo tem uma crítica ou análise, ficou “congelado”. Congelado dentro do carro e lá fora na porta do prédio. O eixo do mundo estava ali entre ele e ele e girava.
Não, não é possível. Viu-se, assim como os mendigos, camelôs e outros engravatados, figurante insípido ao caos.


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a ilustração desse texto é da Marina.

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