PARCERIAS





I

Quatro e meia da manhã, o jornal que tampa o buraco na janela rasgou, está frio, a esposa se contorce na cama sem acordar. Ele tem de dar um jeito naquele buraco. Aquela noite estava perturbada, e não deveria. Havia escolhas importantes para o dia que sucedia. Colocou uma porta do guarda roupas que estava solta em frente à janela e cobriu a esposa com mais um cobertor. A calma voltou para ela.
Frio, muito frio, as botas que calçava eram as do canteiro de obras, teve de usá-las logo ao levantar-se porque não havia encontrado, na busca ali no canto embaixo da cama, o chinelo velho, único outro calçado que dispunha.
Curioso o modo como se alegrava e entristecia repentinamente quando lembrava que aquele dia era o dia de pagamento. O mantimento acabou há três dias. O salário, embora insuficiente, sossegaria o espírito.

II

E espírito era o que o preocupava naqueles dias. Tudo estava “amarrado”. Numa outra noite de insônia, viu na TV, num programa da Igreja Universal, onde diziam haver encostos por toda a parte, que o “diabo” estava assolando o país e a situação econômica de muitas famílias. O pastor insistia em dizer que a solução estava em tomar algumas atitudes “simples”, e ditou uma lista de possibilidades:
_ Se você ganhou um presente de uma pessoa espírita, você deve jogar esse presente fora. Se há um santo em sua casa, ele deve ser queimado e eliminado. Cuidado com as pessoas que freqüentam sua casa, elas podem estar de “olho gordo" nos seus pertences e etc.
Uma hora para dormir foi consumida pelos encostos, a lista de objetos suspeitos era pequena, a lista geral de objetos era pequena. E ele ficou a pensar na história de cada coisa que tinha em casa. A maioria delas era ganhada em campanhas de solidariedade, umas da associação do bairro, outras de uma campanha da igreja católica, igreja evangélica e centro espírita. Não dava para separar. Deus considerará minha situação, pensou.
Sentia-se mal em suspeitar de suas raízes religiosas.

III

Não há desgraça que baste, dizia a mulher. Outra mulher, não a do capitulo anterior. Essa deu a luz ao próprio encosto, falavam os vizinhos.
O filho não tinha mais o que larapiar dentro de casa para alimentar o vício em crack. Uma droga barata, um vício fácil de manter para iniciantes. Ao passo que se todo tempo, com o tempo, é dedicado ao consumo, fica difícil arrumar o sustento. Hoje ele entrou em casa pulando o muro, correndo, mudo, suando frio e assustado: às quatro e meia da manhã.
Queriam matá-lo por coisa pouca, roubou dez reais de um bar. Passou pelos bêbados, pediu um cigarro ao dono do muquifo que estava atrás do balcão. O homem não deu, ele deu um bote na máquina registradora e pegou o dinheiro. O dono do bar saiu atrás dele com arma de fogo, mas desistiu logo de correr.

IV

A mulher da desgraça sem fim, a mãe do encosto. Abriu o portão de manhã e viu as ameaças ao filho pintadas no muro. Agora ele seria morto. Assim que saísse de casa, seria morto. Havia um homem de plantão na esquina, o traficante. Que a pedido do dono do bar e principalmente por uma outra causa particular, o aguardava: o viciado está dando trabalho demais.
Ela passou muda diante do carrasco e não havia mãos por ela. Ninguém, nem mesmo a polícia podia ajudá-la. A policia se faz algo, só o faz após o trágico: espalha luzes na favela, tiros, terror e nada mais.
Um terço na mão, fé na santa e passos curtos, passos desanimados, arrastando poeira caminho a fora até chegar à igreja. Parecia haver demasiado peso em seus olhos que os levavam para baixo, as irmãs já não a consolavam mais, sentiam pena apenas. Hoje missa pela manhã, missa também à tarde.
Na missa da tarde, já anoitecendo, pedidos os mesmos pedidos, saiu da igreja, foi à venda do Sr. João, um bocado de biscoitos e pão e os pés de volta ao caminho, fazendo confusão as pegadas. E entre elas uma nota de cem. A vida do meu filho está salva por hoje, disse.
De frente para o moço, em frente a casa, olhando para baixo, colocou-lhe os cem reais no bolso, atravessou a rua, ouviu o traficante ir embora e entrou.
_ Graças a Deus!
Exclamou várias vezes. Só Ele poderia fazê-la aquele grande bem.

V

Quinhentos reais foi o pagamento, pagando a compra do mês, as contas do mês - água, luz e gás – sobraram cem reais, economizando bem, dá pra chegar ao próximo mês.
Passou em frente a igreja, próximo ao fim da missa da tarde, fez o sinal da cruz, entrou na venda do Sr. João, biscoitos e pão. Os cem reais no bolso furado foram parar no chão. Ele entrou no ônibus e foi pra casa.
Desesperado é pouco para descrevê-lo refazendo o caminha a pé, procurando pelo dinheiro. E espraguejando tudo e todos pela sua maldição. Só podia ser o maldito do encosto em sua vida, somente o diabo era capaz de fazê-lo aquele grande mau.

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